Uma equipe de cientistas fez uma descoberta significativa sobre como o cérebro mantém as memórias de longo prazo. Eles identificaram a molécula KIBRA, que atua como uma “cola” para ancorar a enzima PKMζ, crítica para o fortalecimento das sinapses entre os neurônios. Essa interação garante que as memórias não sejam perdidas mesmo quando as proteínas cerebrais se degradam e regeneram, proporcionando uma compreensão mais profunda da estabilidade da memória. Os achados foram publicados na revista Science Advances.
O Desafio da Memória de Longo Prazo
Os cientistas estavam focados em resolver uma antiga questão da neurociência: como as memórias podem durar anos, ou até décadas, se as moléculas no cérebro estão constantemente sendo substituídas? Os neurônios armazenam informações na força das sinapses, mas as proteínas e moléculas dessas sinapses são instáveis e se degradam após apenas alguns dias. Isso cria um enigma — se os blocos de construção da memória têm vida tão curta, o que nos permite manter memórias de longo prazo?
A Hipótese de Francis Crick
A ideia de que certas interações moleculares poderiam proporcionar estabilidade ao armazenamento da memória existe desde 1984, quando o renomado cientista Francis Crick propôs que interações contínuas entre proteínas poderiam manter a força das sinapses ao longo do tempo. Este novo estudo busca explorar mais profundamente essa hipótese, focando no papel da PKMζ e em como sua interação com a molécula KIBRA pode contribuir para a estabilidade da memória.
A Curiosidade de Todd C. Sacktor
O autor do estudo, Todd C. Sacktor, professor da Universidade de Ciências da Saúde SUNY Downstate, sempre foi fascinado pela memória. Desde jovem, ele acreditava que existiam níveis mais profundos de compreensão para os processos misteriosos do cérebro e foi movido pela curiosidade para encontrar as explicações mais fundamentais para a memória.
O Interesse pelo Armazenamento Molecular da Memória
Sacktor explicou que, durante a faculdade, ele se interessou por como a memória é armazenada no nível molecular, focando no fortalecimento persistente das sinapses durante o aprendizado. Enquanto fazia sua residência em neurologia na Universidade de Columbia, ele descobriu a PKMζ, uma enzima que fortalece as conexões sinápticas, levando-o a investigar como ela funciona e seu papel na memória.
A Descoberta de um Parceiro para PKMζ
Sacktor continuou suas pesquisas com o objetivo de entender como a PKMζ permite que as memórias durem por anos, além da vida útil das moléculas individuais. Ele e sua equipe perceberam que a PKMζ precisava de um parceiro, e essa descoberta foi revelada no estudo: a molécula KIBRA.
A Visão de André Fenton
Outro investigador principal do estudo, André Fenton, professor de neurociência na Universidade de Nova York, foi atraído por essa pesquisa porque acredita que a memória é essencial para o processamento de informações no cérebro, influenciando nossas experiências e expectativas futuras.
Experimentos com Camundongos
Para explorar a conexão entre KIBRA e PKMζ, os cientistas realizaram uma série de experimentos com camundongos de laboratório. Utilizando fatias do hipocampo — uma região crítica para a memória — e técnicas como ensaios de ligação de proximidade e microscopia confocal, os pesquisadores puderam visualizar as interações moleculares entre KIBRA e PKMζ.
Interferindo na Memória com ζ-Stat
Um dos experimentos mais importantes envolveu o uso de um medicamento chamado ζ-stat, que bloqueia a interação entre KIBRA e PKMζ, para verificar se isso interromperia a estabilidade das sinapses e a memória de longo prazo. Outro experimento utilizou um peptídeo chamado K-ZAP, que mimetiza o sítio de ligação de KIBRA, interferindo em sua capacidade de ancorar a PKMζ.
A Função de KIBRA na Memória
O estudo forneceu evidências de que KIBRA desempenha um papel vital na estabilização da PKMζ nas sinapses, criando um “marcador sináptico persistente” que ajuda a manter a memória de longo prazo. Quando as sinapses são ativadas durante o aprendizado, KIBRA se liga a elas, garantindo que PKMζ permaneça fixada e as sinapses se mantenham fortes.
Impacto da Interferência no Comportamento
Os testes comportamentais mostraram que, ao interromper a interação entre KIBRA e PKMζ, houve uma perda da memória de longo prazo nos camundongos. Aqueles que receberam injeções de ζ-stat após aprender uma tarefa de memória espacial não conseguiram lembrar a localização de uma área de choque nos testes subsequentes.
KIBRA e a Manutenção da Memória
O estudo revelou que essa interação molecular não é apenas importante para a memória de curto prazo, mas também pode manter a memória por semanas. Mesmo quando a PKMζ se degrada ao longo do tempo, os complexos KIBRA-PKMζ permanecem nas sinapses, sugerindo que novas moléculas de PKMζ continuam a ser sintetizadas e incorporadas nas mesmas sinapses.
O Paradoxo de Teseu e a Persistência da Memória
Fenton comparou o complexo KIBRA-PKMζ com o paradoxo do navio de Teseu: assim como o navio persiste apesar da substituição de todas as suas tábuas, o complexo KIBRA-PKMζ persiste mesmo com a constante substituição das proteínas componentes.
Limitações do Estudo
Apesar das descobertas impressionantes, o estudo também apresenta algumas limitações. Nem todas as formas de memória dependem dessa interação molecular. Por exemplo, memórias de medo contextual parecem ser mantidas por mecanismos independentes de PKMζ. Além disso, ainda não se compreende completamente como o processo de formação de memórias começa.
Implicações para Doenças de Memória
Os pesquisadores pretendem explorar as possíveis aplicações dessas descobertas no tratamento de distúrbios relacionados à memória. Como a interação KIBRA-PKMζ é crucial para a estabilidade da memória, medicamentos que visem esse processo podem ser usados para melhorar a memória em condições como Alzheimer ou para enfraquecer memórias traumáticas em casos de transtorno de estresse pós-traumático.
Resumo para quem está com pressa:
- Cientistas descobriram que a molécula KIBRA ancorada à PKMζ é essencial para a memória de longo prazo.
- A interação KIBRA-PKMζ mantém as sinapses fortes, mesmo com a degradação das proteínas cerebrais.
- Experimentos com camundongos mostraram que bloquear essa interação provoca perda de memória.
- A pesquisa oferece pistas sobre como as memórias podem durar décadas, mesmo com a constante renovação de moléculas no cérebro.
- A descoberta pode levar a novos tratamentos para doenças como Alzheimer e transtorno de estresse pós-traumático.
- Nem todas as formas de memória dependem dessa interação molecular, e isso será investigado em futuros estudos.